A ascensão política da extrema direita no Brasil nas últimas décadas está intrinsecamente ligada ao crescimento e à instrumentalização de setores da Igreja Evangélica. Com mais de 30% da população brasileira declarando-se evangélica, segundo o Datafolha (2022), esse grupo tornou-se um ator central na política nacional. Sua influência, no entanto, tem sido frequentemente cooptada por projetos autoritários e conservadores, transformando fiéis em massa de manobra para agendas que ultrapassam questões religiosas e aprofundam divisões sociais.
Contexto Histórico: A Politização da Fé.
A partir dos anos 1980, as igrejas evangélicas, especialmente as neopentecostais, expandiram-se rapidamente no Brasil, usando estratégias midiáticas (como a TV Record) e discursos de prosperidade para atrair fiéis. Líderes religiosos passaram a defender uma visão de mundo alinhada ao conservadorismo moral, combatendo pautas como direitos LGBTQIA+, aborto e pluralismo religioso.
Essa postura convergiu com a estratégia de partidos políticos que, desde os anos 2000, buscaram capitalizar eleitoralmente o crescimento evangélico. A bancada evangélica no Congresso, hoje com mais de 200 parlamentares, tornou-se um bloco coeso para barrar legislações progressistas e aprovar projetos como o "Estatuto da Família" (2015), que excluía famílias homoafetivas.
A Aliança com a Extrema Direita: Bolsonaro e o Projeto de Poder
A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 simbolizou o ápice dessa aliança. Campanhas como "Brasil Acima de Tudo, Deus Acima de Todos" e o uso de símbolos religiosos (como a Bíblia) foram estratégias para associar o candidato a uma "missão divina". Líderes evangélicos endossaram Bolsonaro, apresentando-o como "o Davi contra Golias" — um salvador contra supostas ameaças comunistas e "globalistas".
Em troca, o governo Bolsonaro adotou políticas simbólicas e concretas para agradar às lideranças religiosas:
1. Nomeações estratégicas: Pastores para cargos como o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos .
2. Concessão de rádios e TVs a igrejas, ampliando seu alcance.
3. Retórica anticientífica: Negacionismo da pandemia e ataques a educadores, alinhados a visões religiosas fundamentalistas.
Mecanismos de Manipulação
A instrumentalização ocorre por meio de:
- Púlpitos políticos: Sermões que misturam religião e apoio a candidatos, usando a autoridade pastoral para pressionar fiéis.
- Narrativas de medo: Associar a esquerda a "perseguição cristã", satanismo e destruição da família.
- Redes sociais: Grupos de WhatsApp e canais gospel disseminam desinformação, como teorias de que o PT queira fechar igrejas.
Impactos na Democracia e na Sociedade
1. Erosão do Estado Laico: Projetos como "Escola Sem Partido" e a censura a conteúdos educacionais sob pretextos religiosos.
2. Perseguição a minorias: Crescimento da violência contra religiões de matriz africana e da LGBTQIA+fobia.
3. Polarização: A fé é usada para dividir a sociedade entre "bons cristãos" e "inimigos de Deus", enfraquecendo o debate público.
Resistências e Contradições
Nem todos os evangélicos compactuam com essa agenda. Movimentos como Evangélicos pela Democracia, e teólogos como Leonardo Boff criticam a manipulação da fé para fins autoritários. Além disso, pesquisas mostram que muitos fiéis priorizam questões sociais (como pobreza) em vez de pautas morais, indicando uma base menos homogênea.
Conclusão: Entre a Fé e a Exploração
A cooptação de setores evangélicos pela extrema direita revela um jogo perigoso entre religião e poder. Enquanto líderes religiosos e políticos se beneficiam mutuamente, comunidades periféricas — base majoritária das igrejas — muitas vezes veem suas demandas reais ignoradas. Romper esse ciclo exige reconhecer a diversidade evangélica e fortalecer discursos que reconciliem fé e justiça social, em vez de ódio e exclusão.
A democracia brasileira só sobreviverá se a religião deixar de ser arma e voltar a ser refúgio para os que clamam por dignidade.